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Foto do escritorFlavia Quintanilha

Vamos todos morrer! Não hoje.

Eu tenho um pensamento recorrente: nós vamos morrer. Longe de ser um pensamento mórbido e pessimista, pensar isto todos os dias me dá uma alegria imensa em viver. Estar viva, longe da frase piegas do senso comum, concentra todas as possibilidades que uma vida comporta. Todas as dores e alegrias e suas vicissitudes. Parece que viver assim pode ser ruim, mas para mim não é  bem assim. 


Imagine uma criança que tem a felicidade de nascer em uma família amorosa. Sua infância é repleta de aventuras e toda fértil imaginação é incentivada e apreciada. Ela, a criança, passa a pensar que o mundo é um lugar bom, pois todas as suas experiências são de alguma forma perfeitas. Seus desejos são sempre atendidos, pois tudo o que ela quer é ter liberdade para correr, para brincar, para criar. A cada brincadeira uma fábula se forma e a história se escreve.


Enquanto eu fiquei alegre,

permaneceram um bule azul com um descascado no bico,

uma garrafa de pimenta pelo meio,

um latido e um céu limpidíssimo

com recém-feitas estrelas.

Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,

constituindo o mundo pra mim, anteparo

para o que foi um acometimento:

súbito é bom ter um corpo pra rir

e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo

alegre do que triste. Melhor é ser.


Imagine que esta criança, ao crescer, passa a ver um mundo que antes não conhecia. Traições, vinganças, maldades de todas as formas e tamanhos contra ela ou a outras pessoas que ela gosta. Essa pessoa agora jovem distancia-se um pouco da criança que era e passa a construir um outro ser, a pessoa que observa. Esse mundo que agora ela teve contato passa a provocar nela raiva e inconformidade. O tempo passa para esta jovem pessoa e ao amadurecer torna-se triste.


A tristeza agora é sua companheira e da tristeza cria-se um mundo novo, silencioso. Paredes e mantas tecidas em silêncio e dor. A viscosidade das horas deixam opacos olhar e sorriso e ela retoma o diálogo com a criança primeira. Aquela que via beleza e sentido em tudo. Aquela sem experiência e crédula. A fusão das duas, criança e adulta, tornam a pessoa silenciosa. O silêncio, ao longo de muito tempo, transforma-se em amor. O brilho dos olhos reaviva e ela percebe que antes a falta de sentido da vida que só mostra sofrimento dá lugar a atenção ao agora. O agora tem uma força tamanha que a lança de frente para a morte. A morte, antes temida, passa a ser um fato. O fato não tem intenção. O fato é. E tudo o que é, não há saída. 


Bem-aventurado o que pressentiu

quando a manhã começou:

não vai ser diferente da noite.

Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,

o pensamento dividido entre deitar-se primeiro

à esquerda ou à direita

e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:

algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,

um vento bom entra nessa janela.


Olhar para a vida sabendo do fato da morte tornam os dias possíveis ou incríveis, no sofrimento e na alegria. Olhar para o tempo da vida, faz a eternidade ser o momento exato em que a folha desprende do galho. Viver a vida, tendo consciência do fim imprime nela seu sentido, sua finalidade. A vida é o exercício diário de desfrutar a jornada. É por esta razão que a poesia é o elemento primordial da realidade, pois viver plenamente requer adentrar na realidade. Falo da realidade mantenedora de tudo o que existe, não da ficção criada pelas pessoas, pela fé, pela cultura. Falo da natureza como falava Spinoza. 


Acessar num dia qualquer o fato da morte é estar presente na realidade do viver.


Como não afirmar sorrindo “vamos todos morrer”? Para alguns será este o momento de maior vida e realidade que irá presenciar por toda a sua jornada. Imagine?


Acolher este fato liberta para os demais mínimos fatos de maior importância: aproveitar o aniversário da mãe ou do amigo, celebrar um dia qualquer por ser um dia qualquer, observar a mudança de cor nos olhos da amada, gargalhar assistindo um desenho animado, ser uma super-heroína de HQ. Somente vivos podem ser vivos, aproveite


(os poemas neste texto são de Adélia Prado)

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2 Comments

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Ótimo texto! A vida fica mais leve quando adquirimos a consciência da sua temporalidade, da sua efemeridade encarando a morte como um processo necessário e não, penoso.

Gosto muito da filosofia e de como ela nos conduz a reflexões vitais sobre a nossa existência e propósitos de vida. Os poemas de Adélia Prado, também filósofa, ilustraram o texto dentro do viés metafórico e aprazível da arte poética. Parabéns!

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Muito obrigada pela leitura e pelas palavras carinhosas, Úrsula🌷

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