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Foto do escritorFlavia Quintanilha

Só a poesia sobrevive

Li O conto da aia em 2017, mas somente há um mês resolvi assistir a série “The Handmaid's Tale”. Sim, tenho um hábito incorrigível de ver séries após vários anos de seu lançamento, isto me distancia dos julgamentos particulares dos gurus de 30 segundos de informação que povoam a internet. Inicio o texto de hoje evocando essa imagem repugnante da República de Gileade, como um alerta do que vem nas linhas que seguem. Há dias estamos em uma luta contra o “PL 1904, o qual equipara o aborto acima de 22 semanas gestacionais, mesmo aqueles para casos garantidos em lei, ao crime de homicídio e prevê pena de até 20 anos de prisão para as mulheres, meninas e pessoas que gestam que realizarem a interrupção da gravidez”. Qualquer pessoa que nasceu no Brasil após 1932 – ano em que as mulheres conquistaram o direito ao voto –, viu ser publicado o “Segundo Sexo” e testemunhou a legalização do direito ao aborto na França em 1975, tem a mínima noção do que a luta pelos direitos das mulheres representa. Não pretendo ficar chovendo no molhado para explicar o óbvio, que estamos retroagindo como Estado de Direito ao propormos tal PL. Quero ir um pouco além do problema prático da inaptidão de determinados parlamentares, porque mesmo se voltássemos ao ano de 1904 não estaríamos em situação tão absurda.


Quero falar de outro tipo de poder, não o poder do governo nem o das leis, o poder dos costumes. Sorrateiro, silencioso que nos faz aceitar, que nos faz obedecer, que nos faz pensar que não podemos ter direito aos nossos corpos sem a permissão de outra pessoa, que nos faz calar. O mundo criado aos moldes “do alfa” violou as mulheres, as crianças, a natureza e forjou tudo através de falácias do crescimento econômico, do desenvolvimento tecnológico, do fim da fome e da fé.


Quero falar da menina que não tem segurança em sua própria casa. Aquela que quando a mãe sai para trabalhar, o tio aproveita para ter um tempo longo e solitário com ela, na desculpa de lhe dar um banho. Falo da mulher que não consegue se separar do parceiro, pois não vê saída e não tem renda e suporta desrespeito e violência física. Ou da avó que sofre violência moral, por não ser mais capaz de se cuidar sozinha. As mulheres nunca tiveram um minuto de paz nem de segurança neste mundo. Um mundo que enaltece salafrários pela sua posição, pelo destaque no esporte, pelo número de seguidores. Seguidores, é sério isso? Que tipo de mundo deixamos ser criado? Somos tão frágeis assim? Por que não votamos em mulheres que nos defendem? Por que não abandonamos o agressor? Por que não pegamos outro caminho? E em meio a tanta violência e abandono, “eu não confio em ninguém”: pensa a mulher do mundo.


“Eu tenho medo de ficar sozinha, quando a minha mãe volta?”

“Eu não posso dormir antes que ele durma.”

“Por que estou sendo tratada assim?”


A mulher não pode ficar só em qualquer idade que tenha.


“Devemos respeito ao provedor da família.”

“Seu tio é tão talentoso, todos gostam dele.”

“Querida, não reclame tanto, pelo menos seu marido coloca comida na mesa.”


Espero que hoje você não busque esperança neste texto, porque não há esperança aqui hoje, – Mesmo sabendo que amanhã acordarei, esquecerei por um tempo das violações que sofri, procurarei entender aquela pessoa que me abandona, encontrarei força para continuar criando e amando. Tentarei. Hoje não tenho nada a oferecer. Hoje apenas lamento pelo último suspiro do planeta e entristeço pela incapacidade humana em falar sobre assunto tabu.


Enquanto esta forma de vida durar, a menina não terá com quem conversar, a mãe ficará sozinha sem apoio, a avó contará os dia pelo fim.


Eu avisei, hoje é sem esperança. Só a poesia sobrevive.


“Na esquina da minha casa

O medo bate a minha porta 

da janela vejo a rua

e muito sangue a minha volta


Vejo choro, vejo guerra

machismo por toda parte

assédio tomando conta

é mais um homem covarde


É mais uma mulher que grita na esperança de viver

é mais um fato ao meio dia

passando pela tv


Pra que lado olho agora?

quem será que vai me ouvir?

só por causa de uma saia

a culpa toda vem pra mim?


Todo dia uma luta

todo dia um sofrimento

colocam a mão em minha boca

depois vivem o lamento


Cultura do machismo que me tira a existência

pela morte de mais uma

todas gritam RESISTÊNCIA.”

(Heloisa de Sousa - Uma mulher que grita na esperança de viver)

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